Ana Aragão: “O que corre mal também faz parte da cidade. Ficar amarrado a uma memória que já não existe não é saudável”
Ana Aragão desenha a esferográfica cidades imaginárias com os olhos nas reais. Esteve em exposição em Tóquio com “My Plan For Japan” – numa cidade onde a construção em altura contrasta com a noção de bairro e espicaça a imaginação da arquiteta.
A licenciatura em arquitetura deu a Ana Aragão ferramentas para olhar o mundo e as cidades; o talento para desenhar deu-lhe asas para se soltar das cidades que existem e inventar cidades só dela.
Cidades que flutuam e crescem sempre mais para cima desafiando a gravidade.
A arquitetura de papel de Ana Aragão está saturada de referências – a lugares, a autores, a memórias, a experiências, à História e às histórias que lemos nos livros, que vimos nos filmes, que descobrimos nas notícias ou que ouvimos já não sabemos onde.
Nas suas cidades cabe tudo: arranha-céus e casebres, avenidas e vielas, letreiros e varandas, cabos elétricos e cortinas ao vento, candeeiros balouçantes e salpicos da Grande Onda de Kawagawa.
Nos 480 anos da chegada dos navegadores portugueses ao Japão, as fantasias urbanas de Ana Aragão aportaram a Tóquio. Não cidades quaisquer, mas cidades que parecem Tóquio, que cheiram a Lisboa e que têm pedaços do Porto, tudo desenhado com esferográficas Bic sobre papel de cenário.
No biombo dourado que fez de propósito para apresentação em Tóquio, há templos xintoístas, o Panteão e a Sé do Porto, a Nakagin Capsule Tower e a Pala do Pavilhão de Portugal. Tudo caótico, orgânico, com sobreposições, obliterações e chega-para-lá, pois é assim que as coisas são na imaginação da ilustradora, mas também na realidade.
Desde a sua primeira participação na Representação Portuguesa de arquitetura na Bienal de Veneza, em 2014, Ana Aragão é reconhecida como uma das mais importantes ilustradoras portuguesas.
A exposição “My Plan For Japan” esteve aberta ao público japonês na Galeria Hillside Forum, edifício icónico em Daikanyama, projetado pelo arquiteto japonês Fumihiko Maki, Prémio Pritzker e uma das referências do modernismo nipónico. Foi aí que a entrevistámos.
O seu trabalho gráfico é sobre cidades – imaginar cidades, fantasiar cidades. O que é que faz a essência de uma cidade?
O nosso roteiro sentimental. É sempre isto. É um bocadinho como os livros. O Jorge Luis Borges dizia que eles só existiam porque alguém os estava a ler. Uma cidade não existe por si só. Existe porque alguém a percorre, porque alguém se relaciona com aquele lugar. A cidade é ativada, digamos assim, por nós, por aqueles que a habitamos, temporária ou permanentemente. E aqui também há uma questão bastante interessante: esta questão da habitação permanente ou temporária. Em Tóquio, por exemplo, parece que somos todos habitantes temporários.
O que torna uma cidade única é a experiência que cada um tem dessa cidade? Ou seja, a singularidade de cada cidade é algo que lhe é exterior, é algo que não lhe é imanente? Não é algo que esteja lá e que qualquer pessoa pode experimentar ou percecionar como único?
Eu tendo sempre mais para a experiência, mas de facto tem que haver qualquer conjuntura ou conjunto de condicionantes – geográficas, climatéricas, arquitetónicas, urbanas, de organização, de segurança, etc. Há muitos, muitos fatores que tornam a experiência da cidade uma coisa única. Porque olhar a cidade como um conjunto de ícones – a Torre Eiffel em Paris, ou o Big Ben em Londres, a Torre de Tóquio em Tóquio, e por aí fora – parece-me muito redutor, embora seja também um tipo de turismo que se pratica. Mas parece-me redutor olhar para as cidades pelos ícones arquitectónicos, que são importantes, certamente, mas são só um porta-chaves. O importante é tudo o que está em torno dessa experiência, desses ícones.
O que é que torna a sua cidade, o Porto, única?
A forma como as ruas se relacionam com as outras ruas, a forma como viramos de uma rua para outra e caminhamos. Isso tem a ver com o desenho da cidade desde a origem. Uma cidade mais organizada e ortogonal, por exemplo, tem uma experiência completamente diferente do Porto. No Porto temos a experiência da importância da sombra, do recanto, daquilo que ainda não vemos mas vamos descobrir. Diria que o Porto tem a ver muito com essa descoberta.
E Lisboa?
Lisboa já não será tanto isso… Tem mais a ver, se calhar, com uma certa imponência, com a questão da luz, com um arejamento arquitectónico e urbanístico que o Porto não tem e por isso mesmo o Porto tem o seu encanto, e Lisboa seu encanto.
Mas também há elementos que são comuns às cidades grandes, não? Vê elementos comuns, por exemplo, a Tóquio e a Lisboa?
Tem mesmo de haver. Ou seja, se o grande é feito do pequeno – e o meu trabalho lida muito com essa questão – então, se reduzíssemos, se criássemos um abecedário, ou um dicionário para a cidade, tínhamos de pôr sempre a rua, a avenida, a árvore, as portas, as janelas, a altura dos edifícios… Obviamente, todas têm ruas, passeios, carros e autocarros e táxis a passar.
O que é comum são as componentes e o que é único é a maneira como as componentes se relacionam umas com as outras?
Exatamente.
Falemos da homogeneização. Cada vez mais encontramos em todas as cidades as mesmas lojas, os mesmos cafés, marcas e serviços. As mesmas montras da Louis Vuitton com a Yayoi kusama, o mesmo café do Starbucks e os mesmos hamburgueres da McDonalds… O que significa e qual a sua consequência?
Por um lado, acho que isso nos dá a todos aquilo que também precisamos, um sentimento de conforto. Essas marcas, muito bem posicionadas e muito bem estudadas, apelam àquilo que é fundamental no ser humano: por mais que sejamos todos turistas, todos precisamos de referências. Por outro lado, este tipo de massificação e homogeneização das cidades faz com que elas muitas vezes percam a identidade. A falta de políticas que imponham restrições, que protejam o património local, faz com que se opere a gentrificação. As cidades, ou os centros das cidades, correm o risco – e muitos já ultrapassaram e caíram no precipício – de serem só centros de fachada, onde as pessoas já não vivem, onde só podem ir às compras ou fazer turismo, e andar de tuk tuk. Aí, sim, acho que estamos num sítio perigoso, porque não são as pessoas que vêm de fora que vão cuidar do que é local. E aí ficamos só com a ideia da cidade descartável e de consumo rápido.
Vê as cidades como organismos vivos?
Sim, totalmente.
E se a vida das cidades for essa, tornarem-se iguais umas às outras? Se a mudança faz parte do processo, e se o processo for no sentido da homogeneização, devemos travar isso?
Eu vejo a cidade como um processo orgânico e também um bocadinho como Frankenstein, ou seja, como o monstro criado pelo homem que será sempre maior do que o seu criador. Portanto, não há forma – nem com políticas muito impositivas – de travar uma sequência lógica. E, de facto, a cidade, tal como o ser humano, está cada vez mais longe da sua natureza. Nota-se em muitas coisas. Estamos mais artificiais. É uma sequência e uma consequência lógica dos tempos.
Daí a minha pergunta. Não temos de gostar de como as coisas são. Se calhar não gostamos de envelhecer… mas é a vida. Se calhar, não gostamos que as cidades se gentrifiquem, mas e se isso for parte do processo contemporâneo? Devemos intervir para o travar, para proteger a genuinidade de uma cidade? Se essa genuinidade for imposta de forma artificial, ainda é genuína?
É uma excelente questão… Provavelmente não… De facto, as coisas são cíclicas e a cidade é isso mesmo, temos que aceitar que as coisas não vão durar. E o Japão nisso é bonito, pelas lições que nos ensina no modo de ver aquilo que é fugaz. Por isso também o título do biombo que fiz: Auto da Barca do Efémero.
Nas cidades do Japão, sobretudo em Tóquio, há a noção da efemeridade das coisas e da transitoriedade permanente, até por causa dos terramotos. Ao contrário de um certo fixismo ocidental, em Tóquio é normal construir um arranha-céus colado a um templo secular, até, se calhar, em cima do templo secular, ou até mudar de sítio ou demolir esse templo que perdeu função ou sentido…
Isso mostra uma perspetiva mais saudável, da naturalidade dos tempos e do tempo. O caso da demolição da Nakagin Capsule Tower é super interessante. Eu vi uma entrevista do arquiteto em que ele estava desgostoso, mas aconteceu, por pressões imobiliárias, julgo eu. E aquilo que corre mal, os desfechos menos felizes, também fazem parte da cidade, da vida. A nostalgia, ficar amarrado a uma memória do que já não existe, não me parece fazer sentido nem ser saudável do ponto de vista do crescimento e da experiência.
Como surgiu esta sua exposição My Plan For Japan?
Com um convite do embaixador Vítor Sereno, na Embaixada de Portugal no Japão, para as comemorações dos 480 anos da chegada dos portugueses ao Japão. Parte já tinha sido exposta no Museu do Oriente, em 2021, numa exposição intitulada No Plan For Japan. Trazer o meu trabalho ao Japão motivou o novo título, My Plan for Japan. É uma construção do meu imaginário, que cruza arquitetura, animação, arte e que questiona os limites da arquitetura em representações que se relacionam com o Japão, nomeadamente com projetos específicos de arquitetos japoneses como Kenzo Tange, [Kiyonori] Kikutake, entre outros. E alguns [desenhos] são apenas construções minhas, problematizações de temas relacionados com a cidade ou com edifícios. Para esta exposição fiz também uma reinterpretação dos biombos Namban, num novo biombo que se chama Auto da Barca do Efémero, uma visão contemporânea de uma chegada de Portugal ao Japão nos dias de hoje.
Já expôs em vários países, em várias cidades fora de Portugal, mas esta é a primeira vez que uma cidade é objecto de duas exposições, como uma sequela. É um acaso, ou Tóquio é um caso à parte no seu imaginário?
No meu roteiro sentimental, de fascínio, Tóquio é mesmo um caso à parte.
O que é que faz esse caso à parte?
A sua condição de megalópole e a contradição que é ter uma organização extrema do ponto de vista das regras e condutas, que faz com que eu, enquanto ocidental, perca totalmente os meus códigos comportamentais. Perante esta urbe, fico sem saber como me comportar. Isto é muito curioso porque nos acontece poucas vezes no mundo global em que vivemos. E o que Tóquio tem de fascinante é que é uma cidade global, que podia cobrir o mundo inteiro – e quando se está aqui, parece mesmo que cobre o mundo inteiro – mas depois entramos em qualquer sítio, num restaurante, num bar, numa loja, e ela é local, mantém a tradição, o ritual, os cheiros, os comportamentos. Tudo é o local, como se estivéssemos no nosso pequenino bairro. Tóquio é como se fosse o global construído por muitos pequenos pontinhos.
Pela coincidência permanente do macro e do micro?
Isso. Tóquio, e o Japão, também tem outra particularidade, o Roland Barthes diz isso no seu livro de uma forma muito interessante, e que tem a ver com o meu trabalho. Aqui é tudo muito gráfico. Se calhar é o sítio mais gráfico que conheço – tudo está coberto com desenhos ou letras ( e para uma ocidental que não entende o japonês, as letras também são desenhos). É um bocadinho redundante construir desenhos sobre desenhos, e essa foi a maior dificuldade. Por outro lado, o cruzamento entre o passado e o futuro se calhar é mais claro do que noutras cidades grandes ou gigantes que eu tenha conhecido.
Não esconde o fascínio pela arquitetura metabólica, que vê os edifícios como organismos vivos que fazem parte de uma malha mais ampla, também viva, que é a cidade. A Nakagin Capsule Tower era um ícone do metabolismo, e tem muitas referências a ela nos seus trabalhos. O edifício existia quando fez estes desenhos, e já não existe quando eles são mostrados em Tóquio. Como lida com este facto?
Eu tendo a ser mais radical da minha abordagem à cidade e não sou capaz de ter uma visão nostálgica de perda de qualquer coisa, mesmo com edifícios que me sejam familiares. Tenho uma visão mais pragmática do fim da vida dos organismos, neste caso, dos organismos que vivem na cidade. Tendo a ser mais desprendida. Se calhar também por isso não sou arquiteta e só faço estas coisas de papel que eu sei que são passíveis de ser destruídas. Não tenho necessidade de deixar um legado. Lido até relativamente bem com a ideia da morte, da morte das pessoas, de um edifício, ou, eventualmente, de cidades ou lugares. Não sou demasiado nostálgica e acho que isso se vê no meu trabalho. É isto a naturalidade com que temos de viver a cidade.
A Nakagin Capsule Tower não foi demolida apenas por pressões imobiliárias. Foi desmantelada porque nunca foi o organismo vivo que o Kisho Kurokawa imaginou. Nunca foi revitalizada, não foi mantida como era suposto, tinha grandes problemas estruturais; ou seja, envelheceu e morreu. Será que o desaparecimento deste edifício foi o culminar da ideia da arquitectura metabólica, no sentido em que a morte faz parte da vida?
Sim, e um certo falhanço do movimento moderno. Eu acho que o metabolismo terá sido um desfecho muito radical e muito utópico do movimento moderno e a utopia, como sabemos, normalmente termina em distopia. Se calhar foi o que aconteceu aqui e o que vai acontecer sempre. Se a utopia é um não lugar, então então o lugar nunca vai existir.
O que é que ficou deste movimento? A ideia de organicidade?
Salvem-se as ideias, e salve-se o pensamento. Eu acho que, enquanto pensamento, o movimento moderno foi mais do que bem conseguido. [Do metabolismo] fica a ideia de organicidade, de uma certa coragem, de arrojo, a ideia de que é possível as cidades serem esta coisa orgânica do plug in, plug out. Existirá? Existe no plano do futuro paralelo, do futuro que se bifurca, borgeano, enquanto ideia que nos alimenta e que nos permite construir segundas teorias, terceiras teorias, quartas teorias e por aí fora; permite-nos construir sobre o pensamento. Mas a realidade nunca irá conseguir cumprir aqueles nossos delírios. As ideias radicais vão sempre encontrar barreiras na realidade, porque, por mais voltas que se dê, a gravidade impele-nos para o chão. Os meus desenhos contrariam isso, portanto, ainda há esperança no reino da imaginação e da ficção.
Nas suas cidades imaginárias falta espaço? É por isso que tudo é vertical?
Nas minhas cidades imaginadas o mundo está completamente coberto e já não temos nem um centímetro quadrado para construir nada, então tem tudo que crescer para cima. É engraçado que a verticalidade está bastante associada à ideia do futuro. Tem a ver, obviamente, também com o ser humano, que caminha na vertical, mas qualquer coisa futurística eu só consigo conceber na verticalidade. É a ideia da Babel, que não é futuro, certamente, mas que é a grande utopia de chegarmos aos céus.
É mais difícil ver essa verticalidade em Lisboa ou no Porto, não é?
Sem dúvida. Eu tenho um trabalho sobre Lisboa, em que eu recortei a Baixa Pombalina – uma zona da malha ortogonal pombalina – e transformei tudo isso num conjunto de arranha-céus. O desenho consegue mentir. É até esse um bocadinho o desígnio do desenho e da arte.
Acredita que estas cidades imaginadas, que não são concebidas para serem reais, podem influenciar a arquitetura construída?
Acho que não. A arquitetura construída parte da arquitectura do papel, e há muitos arquitetos que o fizeram e o fazem em simultâneo. Grandes arquitetos. O desenho servia um bocadinho como tese, como arrojo, como quase uma doutrina, um manifesto. Depois, há o que é “fazível”. O que é fazível muitas vezes está à altura, mas normalmente não está. Porque o desenho deixa sempre muito espaço para imaginar; a realidade deixa, mas menos.
A obra central desta exposição é o biombo Auto da Barca do Efémero, criado para ser apresentado aqui em Tóquio. É uma reinterpretação dos biombos Nanbam, com um diálogo entre passado e presente, entre Ocidente e Oriente. A sua arte vive muito desses diálogos, não é? Diálogos sincrónicos e diacrónicos; entre presente, passado e futuro, mas também diálogos com as outras realidades de cada momento?
Sim. Sempre em diálogo. Quando comecei a fazer estes trabalhos, chamei-lhes anagrafias, por causa da graça do prefixo Ana, mas também porque ana tem a ver com inversão, com as coisas não estarem no sítio certo nem no tempo [certo]. Eu sou desarrumada espacialmente e temporalmente. Portanto, aquilo a que as pessoas chamam imaginação é só a minha forma desarrumada de pensar e de convocar todos os tempos, todos os lugares, todas as memórias.
Uma cidade também é um diálogo entre várias realidades num momento, e vários momentos e vários tempos que convergem para uma realidade?
A cidade é isso mesmo, e é também um jogo de equívocos. Nós vemos também aquilo que está lá e vemos muitas coisas que não estão lá. Eu vou comprovando isso com o meu trabalho. Por exemplo: eu mostro um trabalho aleatório, uma coisa que não tenha a ver com nenhuma cidade, é só uma cidade minha, genérica – se eu a mostrar no Porto as pessoas vão dizer: ‘Tão bonito, o seu Porto”, e não é o Porto nem tem nada a ver com o Porto… as pessoas vêem aquilo que querem ver, projetam.
O turismo é uma forma de concretizar esses diálogos. Sendo alguém que pensa cidades, vê o turismo sobretudo como risco ou como oportunidade?
O turismo é, sem dúvida, uma oportunidade. É muito importante esta ideia da viagem, é uma forma de conseguirmos perceber, primeiro, que somos muito, muito, pequeninos. Podermos sair da nossa casa, do nosso bairro, da nossa cidade e ir para outras é uma lição de humildade. O turismo ser tão acessível só pode ser bom, do ponto de vista da experiência e do crescimento pessoal. Tem consequências más, mas tudo tem.
E do ponto de vista do impacto nas cidades? Com a massificação, pode deixar mais cicatrizes do que os benefícios que traz?
Vai deixar certamente cicatrizes, mas vamos ter que aprender a lidar com isso, porque acho que muito dificilmente isso é reversível. Vamos ter que aceitar esta ideia de que o movimento perpétuo faz parte da nossa existência e da natureza humana.
*Filipe Santos Costa nasceu na Madeira e há 30 anos escolheu viver em Lisboa. A sua estreia como jornalista foi a escrever sobre a cidade, no suplemento Local do Público. Vive em Tóquio desde 2021.